Auto terapia

Um medo. Um pânico. Entre todos os pânicos que assolam o ser humano e, especialmente, a ser humana aqui. É o medo de pipocar enquanto mãe. Isso. Dar p.t. Bugar. Surtar. Abandonar o barco. E não levar a maternidade até o final. Minha mãe foi assim.

Minha mãe era e é alcoolatra. Sempre apresentou sérios problemas que só fui entender que eram problemas quando fiquei mais velha. Até hoje me caem fichas da sua não normalidade (talvez tenha mais alguma doença psiquiátrica de base). Aos 12, passei a morar definitivamente com minha avó paterna, minha salvadora. Uma pessoa dotada de um amor infinito com quem tive uma relação super difícil contaminada demais pela influência minha própria mãe. Manipulação. Quando minha avó se foi, eu já morava sozinha, já fazia terapia, ia almoçar alguns dias na sua casa e podia deitar minha cabeça em seu colo pra ela coçar minhas costas com as pontas das unhas. Saudades. Quando minha avó se foi, eu já entendia melhor o nosso amor e o quanto ela foi decisiva para eu não ter vícios, ter estudado, me formado e ter desenvolvido um bom nível de empatia. Minha avó era esse ser humano extremamente preocupado com os outros e me treinou a olhar ao redor. Mas voltando. Após a separação dos meus pais, minha mãe entrou numa ladeira sem fim. Descendente. Lembro de buscá-la na rua bêbada, de acompanhá-la em bares. Lembro dos escândalos. Lembro das suas ausências. Lembro das suas síndromes de perseguição com tudo e todos. Lembro do abandono. Muitas vezes, olho pra mim, lutando com os meus defeitos e dificuldades e vejo que até que tô indo bem. Às vezes, olho e penso: “vou caminhar para o precipício de terminar como a minha mãe.” E meu medo magnânimo nessa vida é que meu filho sinta as mesmas coisas que senti. Meu medo é o de dar pau. Engolida pelo dia a dia, pela guerra entre uma maternidade solo versus objetivos extra uterinos. Medo de não saber desligar nunca o modo cuidadora pra ativar o modo afetuoso de brincar, me divertir e ter prazer ao lado do meu filho. Enxergo bem as lacunas do que não dou conta com ele. Me incomodam. Minha pia está suja há dias. O lixo fede porque não joguei fora. E o fóssil do mosquito que matei na quarta, ainda empretece a parede. Mas eu preciso deitar 15 minutos após o almoço. Preciso fugir. É um pavor e ao mesmo tempo um juramento. Porque eu me comprometi com Bento. E me comprometi com minha avó. Amar e cuidar até o final. Não cultivar vícios. Manter na minha vista quem sou eu sem vícios. O alcoolismo é um transtorno tão bizarro, tão naturalizado que vai transformando a pessoa e tira-lhe o prazer de qualquer coisa que não envolva bebida. Conheci pouco meus pais sem isso. Não sei realmente quem eles são sem o álcool. Tenho flashes. E a única coisa, pessoa e divindade mortal que posso tomar como parâmetro é a minha avó. A única chance que tenho de não pipocar e crer que posso ser essa referência mesmo que defectível, mesmo que atrapalhada para Bento. Me vejo nos rompantes da minha mãe. Me vejo no distanciamento do meu pai. Luto. Batalho. Peço desculpas. Converso. Corro pra um abraço. Me encontro no apoio irrestrito da minha avó. No esforço pra brincar de gato mia mesmo quando a vida tá osso de aturar. Me encontro na cama arrumada com o edredom que era de Dona Rita. No desenrole pra Bento ir para o banho. Tem horas que parece que construo um castelo do zero sem ter cursado engenharia. Vai desabar, penso. Respiro fundo. Não vai não. Você dá conta, Fernanda. Rita está onde estiver ao seu lado pra ajudar. E VOCÊ VAI CONTRUIR UM CASTELO INCRÍVEL, PORRA!

FIM

E assim esse texto foi uma auto terapia que começou com um demônio irreal com fundamentos teóricos e se tornou um ato de valentia real com declaração de amor através de uma frase motivacional digna de filmes de luta e quem ousaria dizer que não é em sua realidade. É pra isso que eu escrevo.

Deixe um comentário